sábado, 14 de maio de 2011

Para sempre

Vivia absolutamente em seu mundo de objetos achados, abandonados, desprezados.
Cultivava assim fragmentos de um passado de um ser qualquer, qualquer ser, alguém que se foi.
Sem ninguém para visitá-lo, para conhecer sua morada, sua modesta casa na esquina da encruzilhada. Casa de telhas velhas, de paredes desbotadas. Uma casa antiga, repleta de antiguidades.
Era o ser louco, o mendigo com morada. O motivo das piadas do boteco próximo ao lar:
“Lá vem o doido com sua sacola cheia de nada!”
Centenas de milhares de seres hipócritas passavam o dia no tribunal de rua, julgando e menosprezando o senhor simples, barba branca humilde, olhar sem ambições, um sorriso de ouro e de sentimentos atemporal por coisas descartadas.
Domingo de sol, boteco lotado, início de uma semana regada por dois feriados. Cerveja gelada, futebol na TV e o senhor de barba branca humilde, resolve falecer no meio da encruzilhada, apontando para porta de casa.
Como se nada fosse tão importante, para desobstruir o trânsito, tiraram o entulho e levaram para sua morada.
Um choque de sutileza e lembranças de um esquecido passado surpreende os carregadores do corpo.
A casa antiga, de paredes desbotadas, cultivava em sua sala um jardim de recordações, boas e ruins de cada ser daquele bairro.
O guarda-roupa de uma mãe que se fora, fotos do irmão que mora distante e não se vê há anos, os ursinhos da filha assassinada, bilhete e jóias da ex-mulher que o trocará.
Coisas insignificantes jogadas fora para esquecer ou fazer desaparecer o passado e as lembranças que nos machucam.
Como se fosse algo tão simples assim, deletar o passado.
Esse velho ressuscita a alguns anos dentro de cada um de nós.
Com uma bela criança no colo, que com uma simples pergunta traz junto uma sacola repleta de objetos e uma sala com um jardim de recordações, boas ou ruins.
“Vô! Como o senhor conheceu a vovó?”

Um comentário:

  1. Muito bonito, meu irmão!
    Você é, sem dúvidas, um grande talento!
    Forte abraço!

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